quinta-feira, 29 de agosto de 2013

Sobre manifestações, ações e reações.

Compartilho, abaixo, texto de autoria do amigo Samuel Braun. Texto bem detalhado e com bastante esmero e consistência.
É um pouco longo, mas acredito que vale a pena a sua leitura.


"Há pelo menos dois meses tenho sido confrontado com perguntas, hora honestas, hora meras arapucas, sobre minha opinião a respeito do “vandalismo”, dos “vândalos”, dos “fascistas”, dos Black Blocs e das minorias que iniciam a violência em manifestações pacíficas (sic). Hoje, decidi tentar deixar isso afixado como uma resposta padrão, que valerá para cada oportunidade em que for de novo perguntado sobre esses temas, exceto quando eu achar que caiba um adendo ou supressão. Para todos os efeitos, os termos com aspas acima, assim grafados pra demonstrar o uso intencional e distorcido da palavra, serão repetidos sem estas aspas, mas mantenho a crítica, e discorrerei sobre ela.

Etimologia do vandalismo

É importante destacar a origem da palavra "vândalo". Apesar de remontar sabidamente a uma linhagem germânica dos primeiros séculos de nossa era, seu nome tomou significação especial a partir de uma rotulação premeditada por um Bispo Henri Grégoire que se valeu da passagem histórica em que este povo havia vencido uma guerra contra Roma, invadido e levado os despojos da cidade, além de destruir-lhe todos os valores simbólicos (como em qualquer guerra), para rotular o comportamento popular que destruía objetos de arte, monumentos e artefatos que simbolizassem o passado de “feudalismo”, “tirania da realeza” e “preconceito religioso”, durante o Reino do Terror. O Abade chegou a afirmar que “Inventei a palavra para abolir o ato”.

Portanto, vemos que a etimologia da palavra já aponta para uma ação planejada e escamoteada de rotular para criminalizar um comportamento, não por seus significados reais, mas por aquilo que falsamente se diz deles. Vandalismo assim passou a ser, junto de fascismo, as palavras mais utilizadas para rotular o indesejado e assim encerrar o debate que ele pudesse provocar. É vandalismo, é fascismo, tenha medo!

Para, além disso, sabedores de que aqueles que hoje usam a palavra desta forma o fazem em acordo coma tradição dela, devemos nos encorajar a superar o rótulo e buscar as causas que motivam as ações. Em geral, as ações de danificação a patrimônio material, público ou privado, é a principal justificativa para a rotulação. Também, menos recorrente, o uso de objetos diversos para enfrentamento violento com as forças coercitivas do Estado.

Assim, quando agentes públicos invadem sem mandado um conjunto habitacional pobre, uma favela, chutam (e quebram) portas e objetos, atiram e matam dezenas de pessoas, o que tudo poderia indicar ser um ato de vandalismo, não o é, pois é praticado por quem faz a rotulação. Pelo Abade francês ou pelo Imperador Romano da ocasião. Vandalismo é só a destruição, real ou simbólica, feita pelo outro. Este outro, não é um sujeito, muito menos portador de direitos, é apenas um objeto na oração.

Podemos então resumir que por mais que a alguém sério possa parecer absurdo, incendiar favelas, expulsar pessoas de suas casas e passar por cima delas com escavadeiras, metralhar seus telhados ou mesmo derrubar suas portas, matar seus ocupantes e dar sumiço nos corpos não é vandalismo. Mas quebrar lixeiras, vidraças e placas de metal é. Ora, falando assim, parece realmente inacreditável que assim o seja. A primeira reação é repensar e procurar uma solução que não passe por comparar um fato com outro. “Quebrar vitrines nada tem a ver com o crime da polícia nas favelas”, “uma coisa não absolve a outra”.

Os diferentes raciocínios que animam as ações de ataque e defesa

Sim, está correto. Quebrar uma vidraça não traz de volta á vida de um Amarildo. Nem é isso que se pretende. Aqui é importante tentar compreender os diferentes raciocínios que coordenam estes atos. Um deles é o que acredita que deve se buscar o choque, o confronto e a visibilidade do caótico para dar projeção à manifestação. O segundo apenas defende que existe uma imparcialidade antidemocrática na ação da polícia, que não garante os direitos de expressão e hegemoniza os interesses da minoria dirigente do Estado, e, portanto é necessário uma tática defensiva que seja capaz de retardar, controlar e atenuar os impactos da ação ofensiva dos agentes de segurança.

Ideológico e simbólico. A busca do confronto.

A primeira bebe em manuais e teorias bem conhecidas de violência simbólica, de anarquismo e de desobediência civil. É intrínseco a descrença na capacidade do Estado, tal como se organiza, em dar resposta condizente às demandas populares, assim como é estruturante a crença na existência de um muro invisível de informação, onde os interesses questionados controlam a versão dos fatos que se dará da crítica, através das corporações midiáticas, podendo, como de costume, simplesmente omitir ou fraudar, tornando assim qualquer protesto pacífico inócuo. Assim, ao quebrarem monumentos, mobiliário urbano, vitrines e outras coisas permanentes e visíveis, tornam impossível a omissão da mídia quanto à existência da crítica. Desta forma, Toullon ou Itaú, uma vidraça de 15 metros de comprimento destruída é vista por todos e precisa ser noticiada.

Além o caráter propagandístico, existe o ideológico. Se quebrar uma vidraça de um banco ou de uma loja cumprem igualmente a função de comunicar a existência da insatisfação, apenas o ataque aos símbolos maiores do sistema que se questiona são capazes de adicionar um alvo, um endereço bem definido à crítica. Bancos, grandes empresas multinacionais, órgãos de alto escalão do governo são símbolos inequívocos do que se repudia: capitalismo, exploração e coerção estatal. Assim, apesar de uma lojinha estar também inserida no capitalismo, atacá-la não possui carga simbólica uma vez que todos nós, querendo ou não, estamos submetidos à subsistência na reprodução da lógica capitalista, mas aqueles que possuem poder de manobrar os destinos das políticas econômicas, através de lobbies e ações diretas na jogatina financeira, estes representam o mal que subjaz ao sistema.

Autodefesa. Desistir ou insistir. Quando correr e se proteger já não bastam

Assim, entendemos o primeiro raciocínio. Independente de concordar com ele. O segundo já é menos revolucionário e mais pragmático. Enquanto o primeiro está basicamente no campo da ideologia e do simbólico, trazidos para o tangível, o segundo é no campo das ações práticas, de autopreservação. Após décadas de ditadura, séculos de escravidão e anos de manifestações democráticas serem reprimidas com violência, assassinatos, torturas e toda sorte de criminalidade impune pelo Estado, é irracional exigir que alguém acredite que o comportamento, conformado em habito, não se repita. Assim, quem algum destes dias saiu de sua casa ou trabalho para um protesto sabe bem que uma das sensações inegáveis é a de preocupação e medo antecipado de “levar algum tiro”, ser “baleado” ou “se intoxicar com gás”. Quem foi em mais de duas ou três manifestações, adiciona a estes legítimos medos o de ser acusado falsamente de algum crime ou delito, premeditada e criminosamente, por algum agente militar de policiamento.

Assim, cientes da impunidade e injustiça existente estruturalmente na ação policial, e ainda mais sabedores da escalada de letalidade destas ações ultimamente, duas opções restam: desistir de protestar e sucumbir à repressão de um direito pétreo e fundamental da liberdade, ou persistir no protesto, mas desta vez adotando táticas preventivas de proteção. Assim, camisas, vinagre, máscaras, casacos, escudos e outros objetos de uso comum são improvisados pra proteger o corpo da violência esperada (e não tolerável). Mesmo estes simples objetos do cotidiano passam a ser acusados de criminosos (!!!). Pessoas são presas por portar mais de uma camisa, ou um frasco de tempero. Em sequencia, a ação policial ganha maior brutalidade pra perfurar as frágeis proteções usadas pelos cidadãos. Agora, bombas e balas mais pesadas, caminhonetes persecutórias, armas de eletrochoque, tanques blindados, canhões de água e a total falta de limite no emprego destes passam a ser empregados com naturalidade. O sentimento de medo se soma ao de ódio, de desejo de vingança. Não basta mais apenas se proteger. Não basta mais apenas correr. Ou se enfrenta ou se é caçado e destruído. Assim, com este raciocínio, é preciso optar entre desistir do direito de protesto ou criar uma ação coletiva descentralizada de resistência e contra-ataque.

São dois raciocínios simultâneos e opostos. Cada um corresponde a uma ação.

Essas são, sem medo de errar, as motivações principais dos dois raciocínios simultâneos e conflituosos entre si que animam a formação dos chamados Black Blocs. Se existe uma trajetória internacional que forma este termo, recheado de história, regionalismos e ideologias, é também importante a contribuição que o medo e a autodefesa lhe conferem. No nosso caso especialmente, a esmagadora maioria dos adeptos usa como argumento o segundo raciocínio para legitimar o uso de máscaras, pedras, paus, escudos e outros objetos de confronto. Entretanto, estes objetos de defesa e ataque corporal não explicam, pelo caminho do raciocínio de defesa, a ação de depredação de propriedade pública e privada, esta explicada apenas pelo primeiro raciocínio.

É necessário ser estratégico na ação.

Entretanto, o caráter propagandístico existente no primeiro raciocínio não cumpre na totalidade a sua função de disseminar a ideologia. Se é necessário fazer conhecer a crítica, é necessário convencer dela os demais, para que ela não seja, assim que conhecida, rechaçada. E neste ponto, creio que resida o erro estratégico da ação de violência simbólica. Não acho que caiba a mim deslegitimar a opção escolhida, mas creio que tenha o direito de conhecendo-a, discordar de sua eficácia e utilidade. Em nenhum momento aqueles que optam por este raciocínio foram capazes de articular conjuntamente um debate que colocasse em xeque os alvos ideológicos para aqueles que tomam conhecimento dos atos através desta ação simbólica. Só é simbólico se houver relação e comunicação de sentido. Quando o simbólico só possui significado para o emissor, ou existe a incapacidade de compartilhá-lo com o receptor, ainda mais quando se sabe que já existe para o outro significado oposto ao que se deseja comunicar, toda a eficácia deste raciocínio se esvai. E junto dela, corre risco todas as demais razões e motivações dos protestos.

Não creio que em nenhum momento a sociedade tenha parado pra debater o significado último de uma depredação a uma vidraça bancária. Nenhuma crítica ao sistema capitalista veio à tona, nem por parte dos que promoveram o ato. A ação foi praticada através da lógica anarquista, contestatória, mas justificada unicamente através da autodefesa, que no fundo, não sustenta esta ação proativa. O debate assim está perdido. Creio mesmo que seja a hora de se questionar, de dentro pra fora, estas práticas de violência simbólica. Até porque a outra ponta a do raciocínio de autodefesa, conta com grande apoio e compreensão popular. Não entro no mérito de valorar uma ou outra, mas de apontar o êxito de uma e o fracasso de outra. Esse debate passa a ser impositivo quando a ação ineficiente passa a comprometer todas as demais, inclusive o próprio apoio aos protestos.



Em seguida, após debatermos as motivações das ações dos chamados vândalos, precisamos desmistificar esta frase tão repetida de que minorias violentas estragam passeatas legítimas e pacíficas. O uso de minorias aqui não remete ao conceito sociológico de desempoderados, oprimidos, mas de mero cálculo numérico mesmo. A ideia, bem simples, é de que os que se dispõem a lutar contra a ofensiva policial estão em número inferior ao total da manifestação e á parcela dos que fogem quando a força estatal ataca. Assim, se o número dos que fogem é maior e o número dos que resistem não é o mesmo dos que caminharam enquanto não havia violência policial, uma associação simplória é feita em dizer que a maioria dispersou porque não apoiou a ação dos em menor número. É de um grau de hipocrisia abissal. Mas funciona.

Se utilizarmos esta medida matemática apenas, as próprias manifestações são atos de minoria. Mesmo a maior manifestação de nossa história, com um milhão de pessoas, era uma minoria. Afinal, somos seis milhões só na cidade do Rio. Calcular a legitimidade pelo número de interessados ou apoiadores não é o melhor caminho. Ciência Social não é exata. Não é possível usar os limitados conceitos cartesianos e quantitativos para medir problemas intangíveis, conceituais e abstratos.

É sempre um número menor que enfrenta a polícia pelo mesmo motivo que é um número menor que se dispõe também a caminhar pacificamente, em relação aos inertes. Cada grau de ação demanda um dose maior de coragem, capacidade, possibilidade, conhecimento e comprometimento. Nem todos podem, fisicamente, encarar trogloditas em armaduras, encapuzados e armados. Nem todos sabem como fazê-lo. Nem todos tem coragem para isso. Nem todos estão convencidos de que seja possível. Mas não poder, não saber, não acreditar e não fazer não significam absolutamente não apoiar.

É necessária uma boa dose de falta de caráter e outra de interesse pessoal ou corporativo para omitir do raciocínio o deflagrador da violência e acusar a vítima por se defender. É optar por considerar perfeitamente cabível o uso desproporcional, inconsequente e desmotivado da violência para condenar a vítima não só ao sofrimento físico, mas também negar-lhe o direito de defesa. É tomar posição corporativa e de pertencimento com o lado protestado o legitimar de uma ação de barbárie contra discordantes. E, repito, é de absoluto descaramento manipular a verdade, oferecendo uma versão maniqueísta e absolutamente parcial e comprometida dos fatos, para justificar e incentivar a violência física, psíquica e moral, uma forma conhecida e repulsiva de atuação política.

Por último, e não menos importante e marcante deste todo, o termo fascista.

Após sem empregado com afã desesperado por parcela das entidades e instituições democráticas, como mecanismo quase involuntário de defesa e preservação, nos primeiros dias dos levantes de junho, o rótulo ganhou, quando parecia estar sendo sepultado pela ignomínia do uso indevido, um apoio de peso que o traz de novo ao centro do debate.

Como dito, a primeira reação das tradicionais e embotadas formas de calcular e agir políticas foi a de se sentir ameaçada pelo caráter incontrolável e inescrutável da onda de protestos. Utilizando-se das categorias conhecidas e válidas dentro do “tabuleiro” em que se joga a política tradicional, estas instituições se surpreenderam e tentaram interpretar a abrangência do questionamento democrático que pareceu, pela primeira vez no país, estar disposta a incluir nele não só os caso desviantes do modelo adotado, mas também o modelo.

Não era apenas o partido corrupto, ou o político ladrão, adjetivos vagos e suscetíveis aos interesses do jogo, que estavam na mira, mas a possibilidade última de existir, de fato, algum partido não corrupto, e a de ser o político honesto o alvo privilegiado do modelo eleitoral adotado. A hipocrisia do modelo sempre saltou aos olhos. Indignar-se contra ela não devia ser estranhada. Novidade foi este descrédito e indignação terem tomado corpo e decidido agir. A crítica não é algo surpreendente. O momento sim. Afinal, mesmo aqueles que sempre souberam e discordaram do sistema, como por exemplo, os partidos comunistas, se sentiram como pertencentes a ele quando foram surpreendidos com o ímpeto contestador que sempre desejaram ver nas massas. Sempre desejaram, mas quando ele veio, estavam enrolados demais com o sistema para poderem aproveitar. Triste realidade.

Mas realidade esta que não podia ser admitida. Seja por não querer admitir, resignadamente, ou por não desejar ser denunciado. Era necessário negar. Mas como negar algo que sempre foi exatamente o argumento utilizado? Como um partido socialista, ou comunista, inalienavelmente opositores da democracia burguesa ou do Estado Liberal, poderiam agora deslegitimar quem viesse defender o mesmo, só que flagrando-os como pertencentes a esta burguesia e a este Estado?

A solução trazia consigo a opção pelo revisionismo, e a falácia como mola propulsora. Era necessário defender a estrutura construída, a burocracia instituída, e os meios conciliadores adotados ante a possibilidade revolucionária. Era necessário também optar por usar as armas da criminalização ideológica, tão comuns à superestrutura capitalista, para circunscrever, atacar e desmontar a ação desestabilizante da crítica. Assim, se era impossível chamar de conservadora, uma vez que propunha alguma mudança, optou-se por procurar no passado alguma referência para taxar de reacionária. A busca, dentro do campo da dialética, teve que encontrar fora dele o adjetivo necessário: fascismo.

Fascismo, nazismo, totalitarismo e todos seus sinônimos não dizem respeito à crítica materialista da opressão. Não são meios de produção, independem do sistema econômico adotado. São meios de opressão, dominação e coisificação que, no meu entender, não se encontram na crítica marxista. Poderão estar em Foucault ou em qualquer outro, mas o importante aqui é destacar que o sistema de governo democrático, monárquico, ditatorial, republicano ou outro qualquer não encontrarão distinção fundamental na crítica marxista. Pertencem a uma distinção que não toca na exploração do homem pelo homem através dos meios de produção, mas pela violência, pura e simples, que dispensa uma ideologia ou uma superestrutura legitimadora e alienante. Domina porque tem força pra isso.

A rotulação, portanto não possui qualquer preocupação em retratar uma análise preocupada e meticulosa dos significados, mas apenas estereotipar aquilo que se teme. Mostra disso, é quando procuramos ver quem está empenhado solitariamente em impor este rótulo. Disse anteriormente que esta empreitada ganhou apoio de peso recentemente, e volto aqui a ela. Marilena Chauí, conhecida filósofa e ideóloga de esquerda no país, decidiu dedicar sua militância política exclusivamente a lutar contra aquilo que ela parece achar o mais perigoso para o país no momento: o fascismo dos atuais protestantes.

Sua argumentação surpreende de rasteira, ao afirmar que como os manifestantes apontam não desejar ouvir o contraditório e acreditarem ser portadores da verdade inquestionável, e assim, não se disporem a aceitar o divergente dentro deles, são totalitários empenhados numa campanha populista de mobilização de massas. De fato, esta é a caracterização do fascismo. Entretanto, é possível atribuir isto a quase qualquer organização política, se não utilizar-se de um pouco de bom senso. Um partido comunista, um piquete grevista, uma passeata (seja qual for), quase qualquer manifestação política de massa estará sempre crédula de que empunha o estandarte da verdade, que os demais são ignorantes e que devem ser convencidos (ou conscientizados). Ou você consegue imaginar uma passeata do PCB com bandeiras do McDonalds, da Coca-Cola, pró-FMI? Ou então uma manifestação de torturados sendo permeada de bandeiras do Exército, dos Integralistas? É ilógico, contraditório e irracional esperar que um protesto contra algo ou alguém aceite e defenda no seu interior a defesa daquilo contra o que se protesta. E não há nada de fascista nisso. Mesmo que se apele apara a dialética, é preciso respeitar o espaço da tese e da antítese. Se a tese usurpar o espaço da antítese, não há dialética.

Assim é quando os partidos, as instituições, as entidades que estão sendo criticadas como representantes do modelo se infiltram num protesto contra o tal modelo e, elas sim, impõem uma censura ao direito da discordância, do contraditório, da antítese. Ser rechaçado é o mínimo que deviam esperar. Afinal, se havia espaço para aproveitarem a oportunidade histórica e se apropriarem do discurso revolucionário inda incipiente das massas, esta oportunidade foi desperdiçada ao se decidir, à priori e nas alcovas da véspera, confrontar as manifestações e implodirem-nas de dentro pra fora. Aqui, falo com tranquilidade, já que no momento me posicionei radicalmente contrário a tal “disputa das passeatas”. Não havia o que ser disputado, havia o que ser compartilhado, mas para isso necessitava um desprendimento nosso primeiro. Desprendermo-nos das amarras que nos impomos pela sensação histórica de falta de correlação de forças. A correlação nova se apresentava, era preciso romper com as amarras, não lutar por elas.

Quantos intelectuais, amigos, formuladores em que me referenciava ficaram atônitos e cometeram o deslize de, no sentimento de urgência, apresentar sentimentos de autodefesa como se análises fossem. Um grande mestre meu foi insistente, desde o início, em enfatizar que para se interpretar o novo, deve-se primeiro afirmar o que não se sabe dele. Utilizar-se das categorias usuais não serve para analisar algo que não guarda com estas nenhuma relação. O espanto é natural. O medo também. Mas a análise deve procurar compreender a lógica interna do que se apresenta, não ajustá-lo às teorias exógenas que possuímos para outros problemas.

Não há fascismo algum nos atos. Existe a efervescência natural de um movimento de massas. É desconhecer e ignorar em absoluto o caráter fundador e estruturante de que este movimento não almeja líderes, vanguarda, representantes. Como ser fascista sem vanguarda ou liderança, sem uma defesa de um Estado forte e centralizador? Que opção pela sonegação das categorias fundamentais do fascismo é esta? Parece mais um xingamento do que uma categorização. Só que uma adjetivação que se vale do argumento de autoridade para submeter o outro.

Se dentre a heterogeneidade dos manifestantes existem indivíduos ou grupos de atores individuais, ou até grupos organizados, isto não confere legitimidade pra tomar o todo pelo especifico. Acima, já falei sobre os tais atos de vandalismo, os mesmos que servem de materialidade para a falácia do fascismo. Se a opção for considerar qualquer ato de autodefesa do Estado (frise-se) ou de crítica ideológica deste mesmo Estado como fascismo, então estamos no limiar da defesa última do status quo e da criminalização da política. E quem faz esta apologia conservadora é exatamente quem se diz revolucionário.

Para encerrar, peço desculpas pela extensão do texto, mas realmente procurei dar resposta a tudo que lembrei ser necessário neste momento. Durante a escrita deste, uma notícia no jornal local me despertou pra uma omissão: a opção pela ação de depredação (o tal vandalismo) por indignação. Não é aquela que se origina no cálculo da defesa, ou na tática da propaganda e da ideologia. É emocional. É permeado do sentimento de desesperança, de revolta, de descrédito absoluto e avassalador na realização da justiça.

O exemplo que me refiro é a mais uma parada de trens no meio dos trilhos do ramal de Santa Cruz, onde os passageiros, após ficarem 40 minutos presos, lacrados e sem ar nos vagões, quebram as portas e depredam o trem. Nenhum pedido de desculpas, nenhum auxílio, nenhuma indenização, nenhuma medida de punição aos reincidentes controladores do sistema de trens. E a já esperada e repetida criminalização das vítimas, que desmaiam, se intoxicam e passam mal no descaso. Isso causa uma sensação tão avassaladora, que impele a agir irracionalmente. Crente de que a justiça, se existe, não pode ser racional, já que pune as vítimas e indulgencia os criminosos, a única medida que parece viável é apelar pra barbárie como resposta. Vale pros trens, mas vale também para os protestos.

Existem, repito, os que se confrontam violentamente por legítima defesa, e existem os que o fazem por ideologia. Mas existem também aqueles que, sem ser por um caminho ou por outro, são pegos por este sentimento de desesperança e injustiça tão incontrolável que descontam a revolta e a explosão de energia e raiva irracionalmente. Por mais que este “irracional” seja racionalmente bem explicável e compreensível, como tenho feito aqui".

Samuel Braun