Compartilho, abaixo, texto de autoria do amigo Samuel Braun. Texto bem detalhado e com bastante esmero e consistência.
É um pouco longo, mas acredito que vale a pena a sua leitura.
"Há
pelo menos dois meses tenho sido confrontado com perguntas, hora honestas, hora
meras arapucas, sobre minha opinião a respeito do “vandalismo”, dos “vândalos”,
dos “fascistas”, dos Black Blocs e das minorias que iniciam a violência em
manifestações pacíficas (sic). Hoje, decidi tentar deixar isso afixado como uma
resposta padrão, que valerá para cada oportunidade em que for de novo
perguntado sobre esses temas, exceto quando eu achar que caiba um adendo ou
supressão. Para todos os efeitos, os termos com aspas acima, assim grafados pra
demonstrar o uso intencional e distorcido da palavra, serão repetidos sem estas
aspas, mas mantenho a crítica, e discorrerei sobre ela.
Etimologia do vandalismo
É importante destacar a origem da palavra "vândalo". Apesar de
remontar sabidamente a uma linhagem germânica dos primeiros séculos de nossa
era, seu nome tomou significação especial a partir de uma rotulação premeditada
por um Bispo Henri Grégoire que se valeu da passagem histórica em que este povo
havia vencido uma guerra contra Roma, invadido e levado os despojos da cidade,
além de destruir-lhe todos os valores simbólicos (como em qualquer guerra),
para rotular o comportamento popular que destruía objetos de arte, monumentos e
artefatos que simbolizassem o passado de “feudalismo”, “tirania da realeza” e
“preconceito religioso”, durante o Reino do Terror. O Abade chegou a afirmar
que “Inventei a palavra para abolir o ato”.
Portanto, vemos que a etimologia da palavra já aponta para uma ação planejada e
escamoteada de rotular para criminalizar um comportamento, não por seus
significados reais, mas por aquilo que falsamente se diz deles. Vandalismo
assim passou a ser, junto de fascismo, as palavras mais utilizadas para rotular
o indesejado e assim encerrar o debate que ele pudesse provocar. É vandalismo,
é fascismo, tenha medo!
Para, além disso, sabedores de que aqueles que hoje usam a palavra desta forma
o fazem em acordo coma tradição dela, devemos nos encorajar a superar o rótulo
e buscar as causas que motivam as ações. Em geral, as ações de danificação a
patrimônio material, público ou privado, é a principal justificativa para a
rotulação. Também, menos recorrente, o uso de objetos diversos para
enfrentamento violento com as forças coercitivas do Estado.
Assim, quando agentes públicos invadem sem mandado um conjunto habitacional
pobre, uma favela, chutam (e quebram) portas e objetos, atiram e matam dezenas
de pessoas, o que tudo poderia indicar ser um ato de vandalismo, não o é, pois
é praticado por quem faz a rotulação. Pelo Abade francês ou pelo Imperador
Romano da ocasião. Vandalismo é só a destruição, real ou simbólica, feita pelo
outro. Este outro, não é um sujeito, muito menos portador de direitos, é apenas
um objeto na oração.
Podemos então resumir que por mais que a alguém sério possa parecer absurdo,
incendiar favelas, expulsar pessoas de suas casas e passar por cima delas com
escavadeiras, metralhar seus telhados ou mesmo derrubar suas portas, matar seus
ocupantes e dar sumiço nos corpos não é vandalismo. Mas quebrar lixeiras,
vidraças e placas de metal é. Ora, falando assim, parece realmente
inacreditável que assim o seja. A primeira reação é repensar e procurar uma
solução que não passe por comparar um fato com outro. “Quebrar vitrines nada
tem a ver com o crime da polícia nas favelas”, “uma coisa não absolve a outra”.
Os diferentes raciocínios que animam as ações de ataque e defesa
Sim, está correto. Quebrar uma vidraça não traz de volta á vida de um Amarildo.
Nem é isso que se pretende. Aqui é importante tentar compreender os diferentes
raciocínios que coordenam estes atos. Um deles é o que acredita que deve se
buscar o choque, o confronto e a visibilidade do caótico para dar projeção à
manifestação. O segundo apenas defende que existe uma imparcialidade antidemocrática
na ação da polícia, que não garante os direitos de expressão e hegemoniza os
interesses da minoria dirigente do Estado, e, portanto é necessário uma tática
defensiva que seja capaz de retardar, controlar e atenuar os impactos da ação
ofensiva dos agentes de segurança.
Ideológico e simbólico. A busca do confronto.
A primeira bebe em manuais e teorias bem conhecidas de violência simbólica, de
anarquismo e de desobediência civil. É intrínseco a descrença na capacidade do
Estado, tal como se organiza, em dar resposta condizente às demandas populares,
assim como é estruturante a crença na existência de um muro invisível de
informação, onde os interesses questionados controlam a versão dos fatos que se
dará da crítica, através das corporações midiáticas, podendo, como de costume,
simplesmente omitir ou fraudar, tornando assim qualquer protesto pacífico
inócuo. Assim, ao quebrarem monumentos, mobiliário urbano, vitrines e outras
coisas permanentes e visíveis, tornam impossível a omissão da mídia quanto à
existência da crítica. Desta forma, Toullon ou Itaú, uma vidraça de 15 metros
de comprimento destruída é vista por todos e precisa ser noticiada.
Além o caráter propagandístico, existe o ideológico. Se quebrar uma vidraça de
um banco ou de uma loja cumprem igualmente a função de comunicar a existência
da insatisfação, apenas o ataque aos símbolos maiores do sistema que se
questiona são capazes de adicionar um alvo, um endereço bem definido à crítica.
Bancos, grandes empresas multinacionais, órgãos de alto escalão do governo são
símbolos inequívocos do que se repudia: capitalismo, exploração e coerção
estatal. Assim, apesar de uma lojinha estar também inserida no capitalismo,
atacá-la não possui carga simbólica uma vez que todos nós, querendo ou não, estamos
submetidos à subsistência na reprodução da lógica capitalista, mas aqueles que
possuem poder de manobrar os destinos das políticas econômicas, através de
lobbies e ações diretas na jogatina financeira, estes representam o mal que
subjaz ao sistema.
Autodefesa. Desistir ou insistir. Quando correr e se proteger já não bastam
Assim, entendemos o primeiro raciocínio. Independente de concordar com ele. O
segundo já é menos revolucionário e mais pragmático. Enquanto o primeiro está
basicamente no campo da ideologia e do simbólico, trazidos para o tangível, o
segundo é no campo das ações práticas, de autopreservação. Após décadas de
ditadura, séculos de escravidão e anos de manifestações democráticas serem
reprimidas com violência, assassinatos, torturas e toda sorte de criminalidade
impune pelo Estado, é irracional exigir que alguém acredite que o
comportamento, conformado em habito, não se repita. Assim, quem algum destes
dias saiu de sua casa ou trabalho para um protesto sabe bem que uma das
sensações inegáveis é a de preocupação e medo antecipado de “levar algum tiro”,
ser “baleado” ou “se intoxicar com gás”. Quem foi em mais de duas ou três
manifestações, adiciona a estes legítimos medos o de ser acusado falsamente de
algum crime ou delito, premeditada e criminosamente, por algum agente militar
de policiamento.
Assim, cientes da impunidade e injustiça existente estruturalmente na ação
policial, e ainda mais sabedores da escalada de letalidade destas ações
ultimamente, duas opções restam: desistir de protestar e sucumbir à repressão
de um direito pétreo e fundamental da liberdade, ou persistir no protesto, mas
desta vez adotando táticas preventivas de proteção. Assim, camisas, vinagre,
máscaras, casacos, escudos e outros objetos de uso comum são improvisados pra
proteger o corpo da violência esperada (e não tolerável). Mesmo estes simples
objetos do cotidiano passam a ser acusados de criminosos (!!!). Pessoas são
presas por portar mais de uma camisa, ou um frasco de tempero. Em sequencia, a
ação policial ganha maior brutalidade pra perfurar as frágeis proteções usadas
pelos cidadãos. Agora, bombas e balas mais pesadas, caminhonetes persecutórias,
armas de eletrochoque, tanques blindados, canhões de água e a total falta de
limite no emprego destes passam a ser empregados com naturalidade. O sentimento
de medo se soma ao de ódio, de desejo de vingança. Não basta mais apenas se
proteger. Não basta mais apenas correr. Ou se enfrenta ou se é caçado e
destruído. Assim, com este raciocínio, é preciso optar entre desistir do
direito de protesto ou criar uma ação coletiva descentralizada de resistência e
contra-ataque.
São dois raciocínios simultâneos e opostos. Cada um corresponde a uma ação.
Essas são, sem medo de errar, as motivações principais dos dois raciocínios
simultâneos e conflituosos entre si que animam a formação dos chamados Black Blocs.
Se existe uma trajetória internacional que forma este termo, recheado de
história, regionalismos e ideologias, é também importante a contribuição que o
medo e a autodefesa lhe conferem. No nosso caso especialmente, a esmagadora
maioria dos adeptos usa como argumento o segundo raciocínio para legitimar o
uso de máscaras, pedras, paus, escudos e outros objetos de confronto.
Entretanto, estes objetos de defesa e ataque corporal não explicam, pelo
caminho do raciocínio de defesa, a ação de depredação de propriedade pública e
privada, esta explicada apenas pelo primeiro raciocínio.
É necessário ser estratégico na ação.
Entretanto, o caráter propagandístico existente no primeiro raciocínio não
cumpre na totalidade a sua função de disseminar a ideologia. Se é necessário
fazer conhecer a crítica, é necessário convencer dela os demais, para que ela
não seja, assim que conhecida, rechaçada. E neste ponto, creio que resida o
erro estratégico da ação de violência simbólica. Não acho que caiba a mim
deslegitimar a opção escolhida, mas creio que tenha o direito de conhecendo-a,
discordar de sua eficácia e utilidade. Em nenhum momento aqueles que optam por
este raciocínio foram capazes de articular conjuntamente um debate que
colocasse em xeque os alvos ideológicos para aqueles que tomam conhecimento dos
atos através desta ação simbólica. Só é simbólico se houver relação e
comunicação de sentido. Quando o simbólico só possui significado para o
emissor, ou existe a incapacidade de compartilhá-lo com o receptor, ainda mais
quando se sabe que já existe para o outro significado oposto ao que se deseja
comunicar, toda a eficácia deste raciocínio se esvai. E junto dela, corre risco
todas as demais razões e motivações dos protestos.
Não creio que em nenhum momento a sociedade tenha parado pra debater o
significado último de uma depredação a uma vidraça bancária. Nenhuma crítica ao
sistema capitalista veio à tona, nem por parte dos que promoveram o ato. A ação
foi praticada através da lógica anarquista, contestatória, mas justificada
unicamente através da autodefesa, que no fundo, não sustenta esta ação
proativa. O debate assim está perdido. Creio mesmo que seja a hora de se
questionar, de dentro pra fora, estas práticas de violência simbólica. Até
porque a outra ponta a do raciocínio de autodefesa, conta com grande apoio e
compreensão popular. Não entro no mérito de valorar uma ou outra, mas de
apontar o êxito de uma e o fracasso de outra. Esse debate passa a ser
impositivo quando a ação ineficiente passa a comprometer todas as demais,
inclusive o próprio apoio aos protestos.
Em seguida, após debatermos as motivações das ações dos chamados vândalos,
precisamos desmistificar esta frase tão repetida de que minorias violentas
estragam passeatas legítimas e pacíficas. O uso de minorias aqui não remete ao
conceito sociológico de desempoderados, oprimidos, mas de mero cálculo numérico
mesmo. A ideia, bem simples, é de que os que se dispõem a lutar contra a
ofensiva policial estão em número inferior ao total da manifestação e á parcela
dos que fogem quando a força estatal ataca. Assim, se o número dos que fogem é
maior e o número dos que resistem não é o mesmo dos que caminharam enquanto não
havia violência policial, uma associação simplória é feita em dizer que a
maioria dispersou porque não apoiou a ação dos em menor número. É de um grau de
hipocrisia abissal. Mas funciona.
Se utilizarmos esta medida matemática apenas, as próprias manifestações são atos
de minoria. Mesmo a maior manifestação de nossa história, com um milhão de
pessoas, era uma minoria. Afinal, somos seis milhões só na cidade do Rio.
Calcular a legitimidade pelo número de interessados ou apoiadores não é o
melhor caminho. Ciência Social não é exata. Não é possível usar os limitados
conceitos cartesianos e quantitativos para medir problemas intangíveis,
conceituais e abstratos.
É sempre um número menor que enfrenta a polícia pelo mesmo motivo que é um
número menor que se dispõe também a caminhar pacificamente, em relação aos
inertes. Cada grau de ação demanda um dose maior de coragem, capacidade,
possibilidade, conhecimento e comprometimento. Nem todos podem, fisicamente,
encarar trogloditas em armaduras, encapuzados e armados. Nem todos sabem como
fazê-lo. Nem todos tem coragem para isso. Nem todos estão convencidos de que
seja possível. Mas não poder, não saber, não acreditar e não fazer não
significam absolutamente não apoiar.
É necessária uma boa dose de falta de caráter e outra de interesse pessoal ou
corporativo para omitir do raciocínio o deflagrador da violência e acusar a
vítima por se defender. É optar por considerar perfeitamente cabível o uso
desproporcional, inconsequente e desmotivado da violência para condenar a
vítima não só ao sofrimento físico, mas também negar-lhe o direito de defesa. É
tomar posição corporativa e de pertencimento com o lado protestado o legitimar
de uma ação de barbárie contra discordantes. E, repito, é de absoluto
descaramento manipular a verdade, oferecendo uma versão maniqueísta e
absolutamente parcial e comprometida dos fatos, para justificar e incentivar a
violência física, psíquica e moral, uma forma conhecida e repulsiva de atuação
política.
Por último, e não menos importante e marcante deste todo, o termo fascista.
Após sem empregado com afã desesperado por parcela das entidades e instituições
democráticas, como mecanismo quase involuntário de defesa e preservação, nos
primeiros dias dos levantes de junho, o rótulo ganhou, quando parecia estar sendo
sepultado pela ignomínia do uso indevido, um apoio de peso que o traz de novo
ao centro do debate.
Como dito, a primeira reação das tradicionais e embotadas formas de calcular e
agir políticas foi a de se sentir ameaçada pelo caráter incontrolável e inescrutável
da onda de protestos. Utilizando-se das categorias conhecidas e válidas dentro
do “tabuleiro” em que se joga a política tradicional, estas instituições se
surpreenderam e tentaram interpretar a abrangência do questionamento
democrático que pareceu, pela primeira vez no país, estar disposta a incluir
nele não só os caso desviantes do modelo adotado, mas também o modelo.
Não era apenas o partido corrupto, ou o político ladrão, adjetivos vagos e
suscetíveis aos interesses do jogo, que estavam na mira, mas a possibilidade
última de existir, de fato, algum partido não corrupto, e a de ser o político
honesto o alvo privilegiado do modelo eleitoral adotado. A hipocrisia do modelo
sempre saltou aos olhos. Indignar-se contra ela não devia ser estranhada. Novidade
foi este descrédito e indignação terem tomado corpo e decidido agir. A crítica
não é algo surpreendente. O momento sim. Afinal, mesmo aqueles que sempre
souberam e discordaram do sistema, como por exemplo, os partidos comunistas, se
sentiram como pertencentes a ele quando foram surpreendidos com o ímpeto
contestador que sempre desejaram ver nas massas. Sempre desejaram, mas quando
ele veio, estavam enrolados demais com o sistema para poderem aproveitar.
Triste realidade.
Mas realidade esta que não podia ser admitida. Seja por não querer admitir,
resignadamente, ou por não desejar ser denunciado. Era necessário negar. Mas
como negar algo que sempre foi exatamente o argumento utilizado? Como um
partido socialista, ou comunista, inalienavelmente opositores da democracia
burguesa ou do Estado Liberal, poderiam agora deslegitimar quem viesse defender
o mesmo, só que flagrando-os como pertencentes a esta burguesia e a este
Estado?
A solução trazia consigo a opção pelo revisionismo, e a falácia como mola propulsora.
Era necessário defender a estrutura construída, a burocracia instituída, e os
meios conciliadores adotados ante a possibilidade revolucionária. Era
necessário também optar por usar as armas da criminalização ideológica, tão
comuns à superestrutura capitalista, para circunscrever, atacar e desmontar a
ação desestabilizante da crítica. Assim, se era impossível chamar de
conservadora, uma vez que propunha alguma mudança, optou-se por procurar no
passado alguma referência para taxar de reacionária. A busca, dentro do campo
da dialética, teve que encontrar fora dele o adjetivo necessário: fascismo.
Fascismo, nazismo, totalitarismo e todos seus sinônimos não dizem respeito à
crítica materialista da opressão. Não são meios de produção, independem do sistema
econômico adotado. São meios de opressão, dominação e coisificação que, no meu
entender, não se encontram na crítica marxista. Poderão estar em Foucault ou em
qualquer outro, mas o importante aqui é destacar que o sistema de governo
democrático, monárquico, ditatorial, republicano ou outro qualquer não
encontrarão distinção fundamental na crítica marxista. Pertencem a uma
distinção que não toca na exploração do homem pelo homem através dos meios de
produção, mas pela violência, pura e simples, que dispensa uma ideologia ou uma
superestrutura legitimadora e alienante. Domina porque tem força pra isso.
A rotulação, portanto não possui qualquer preocupação em retratar uma análise
preocupada e meticulosa dos significados, mas apenas estereotipar aquilo que se
teme. Mostra disso, é quando procuramos ver quem está empenhado solitariamente
em impor este rótulo. Disse anteriormente que esta empreitada ganhou apoio de
peso recentemente, e volto aqui a ela. Marilena Chauí, conhecida filósofa e
ideóloga de esquerda no país, decidiu dedicar sua militância política
exclusivamente a lutar contra aquilo que ela parece achar o mais perigoso para
o país no momento: o fascismo dos atuais protestantes.
Sua argumentação surpreende de rasteira, ao afirmar que como os manifestantes
apontam não desejar ouvir o contraditório e acreditarem ser portadores da
verdade inquestionável, e assim, não se disporem a aceitar o divergente dentro
deles, são totalitários empenhados numa campanha populista de mobilização de
massas. De fato, esta é a caracterização do fascismo. Entretanto, é possível
atribuir isto a quase qualquer organização política, se não utilizar-se de um
pouco de bom senso. Um partido comunista, um piquete grevista, uma passeata
(seja qual for), quase qualquer manifestação política de massa estará sempre
crédula de que empunha o estandarte da verdade, que os demais são ignorantes e
que devem ser convencidos (ou conscientizados). Ou você consegue imaginar uma
passeata do PCB com bandeiras do McDonalds, da Coca-Cola, pró-FMI? Ou então uma
manifestação de torturados sendo permeada de bandeiras do Exército, dos
Integralistas? É ilógico, contraditório e irracional esperar que um protesto
contra algo ou alguém aceite e defenda no seu interior a defesa daquilo contra
o que se protesta. E não há nada de fascista nisso. Mesmo que se apele apara a
dialética, é preciso respeitar o espaço da tese e da antítese. Se a tese
usurpar o espaço da antítese, não há dialética.
Assim é quando os partidos, as instituições, as entidades que estão sendo
criticadas como representantes do modelo se infiltram num protesto contra o tal
modelo e, elas sim, impõem uma censura ao direito da discordância, do
contraditório, da antítese. Ser rechaçado é o mínimo que deviam esperar.
Afinal, se havia espaço para aproveitarem a oportunidade histórica e se
apropriarem do discurso revolucionário inda incipiente das massas, esta
oportunidade foi desperdiçada ao se decidir, à priori e nas alcovas da véspera,
confrontar as manifestações e implodirem-nas de dentro pra fora. Aqui, falo com
tranquilidade, já que no momento me posicionei radicalmente contrário a tal
“disputa das passeatas”. Não havia o que ser disputado, havia o que ser
compartilhado, mas para isso necessitava um desprendimento nosso primeiro.
Desprendermo-nos das amarras que nos impomos pela sensação histórica de falta
de correlação de forças. A correlação nova se apresentava, era preciso romper
com as amarras, não lutar por elas.
Quantos intelectuais, amigos, formuladores em que me referenciava ficaram atônitos
e cometeram o deslize de, no sentimento de urgência, apresentar sentimentos de
autodefesa como se análises fossem. Um grande mestre meu foi insistente, desde
o início, em enfatizar que para se interpretar o novo, deve-se primeiro afirmar
o que não se sabe dele. Utilizar-se das categorias usuais não serve para
analisar algo que não guarda com estas nenhuma relação. O espanto é natural. O
medo também. Mas a análise deve procurar compreender a lógica interna do que se
apresenta, não ajustá-lo às teorias exógenas que possuímos para outros
problemas.
Não há fascismo algum nos atos. Existe a efervescência natural de um movimento
de massas. É desconhecer e ignorar em absoluto o caráter fundador e
estruturante de que este movimento não almeja líderes, vanguarda,
representantes. Como ser fascista sem vanguarda ou liderança, sem uma defesa de
um Estado forte e centralizador? Que opção pela sonegação das categorias
fundamentais do fascismo é esta? Parece mais um xingamento do que uma
categorização. Só que uma adjetivação que se vale do argumento de autoridade
para submeter o outro.
Se dentre a heterogeneidade dos manifestantes existem indivíduos ou grupos de
atores individuais, ou até grupos organizados, isto não confere legitimidade
pra tomar o todo pelo especifico. Acima, já falei sobre os tais atos de
vandalismo, os mesmos que servem de materialidade para a falácia do fascismo.
Se a opção for considerar qualquer ato de autodefesa do Estado (frise-se) ou de
crítica ideológica deste mesmo Estado como fascismo, então estamos no limiar da
defesa última do status quo e da criminalização da política. E quem faz esta
apologia conservadora é exatamente quem se diz revolucionário.
Para encerrar, peço desculpas pela extensão do texto, mas realmente procurei
dar resposta a tudo que lembrei ser necessário neste momento. Durante a escrita
deste, uma notícia no jornal local me despertou pra uma omissão: a opção pela
ação de depredação (o tal vandalismo) por indignação. Não é aquela que se
origina no cálculo da defesa, ou na tática da propaganda e da ideologia. É
emocional. É permeado do sentimento de desesperança, de revolta, de descrédito
absoluto e avassalador na realização da justiça.
O exemplo que me refiro é a mais uma parada de trens no meio dos trilhos do
ramal de Santa Cruz, onde os passageiros, após ficarem 40 minutos presos,
lacrados e sem ar nos vagões, quebram as portas e depredam o trem. Nenhum
pedido de desculpas, nenhum auxílio, nenhuma indenização, nenhuma medida de
punição aos reincidentes controladores do sistema de trens. E a já esperada e
repetida criminalização das vítimas, que desmaiam, se intoxicam e passam mal no
descaso. Isso causa uma sensação tão avassaladora, que impele a agir
irracionalmente. Crente de que a justiça, se existe, não pode ser racional, já
que pune as vítimas e indulgencia os criminosos, a única medida que parece
viável é apelar pra barbárie como resposta. Vale pros trens, mas vale também
para os protestos.
Existem, repito, os que se confrontam violentamente por legítima defesa, e existem
os que o fazem por ideologia. Mas existem também aqueles que, sem ser por um
caminho ou por outro, são pegos por este sentimento de desesperança e injustiça
tão incontrolável que descontam a revolta e a explosão de energia e raiva
irracionalmente. Por mais que este “irracional” seja racionalmente bem
explicável e compreensível, como tenho feito aqui".
Samuel Braun