Reproduzo e compartilho o texto do colega Samuel, o qual
trata da utilização de um triste acontecimento, que é a morte de uma pessoa, de
uma forma torpe e tendenciosa:
Sinceramente, neste momento vejo a baixeza de certas
pessoas.
Estão, deliberadamente, usando a morte de alguém para fazer uma nefasta
generalização.
Ninguém está emocionado com a passagem de Santiago, estão usando este episódio
grotescamente, sem responsabilidade, vergonhosamente, para fazer uso do
silogismo falacioso e criminalizante.
É perceptível quando não se detém em pedir a prisão do culpado, mas sim a
criação de leis antidemocráticas, procedimentos policialescos, por fora da lei,
criminalizando não o elemento que causou a morte do jornalista, mas unindo-se
numa cruzada conservadora.
Ou o que foi o senador Tião Viana, do PT, ir à tribuna exigir a aprovação
urgente de uma lei, de outro senador do PT em conluio com o sobrinho do Edir
Macedo que torna, pasmem, manifestação e greve crimes de terrorismo!!! Não
bastasse isso, Eduardo Cardozo recebe um projeto de Beltrame pra tornar
manifestação crime tipificado.
Mas apurar as centenas de feridos e mortos pela polícia, só nas manifestações,
nada! Nenhuma comissão, nenhuma nota, nenhum reclame das instituições agora
chocadas e com sangue nos olhos. Apurar os milhares, eu disse milhares, de
mortos pelas policias destes Estados, isso eles não querem e não falam. Sequer
o tal regulamento de atuação das PMs em manifestações cumpriram!
Se houvesse esse padrão, prometido por Cardozo, Grella e Beltrame e não
cumprido, a polícia não poderia ter feito sexta como faz há meses nas ruas e há
anos nas favelas. Não teria iniciado uma guerra que terminou com o revide de um
rapaz inconsequente, ocasionando uma vítima colateral que pagou com sua vida.
Me desculpem, mas não sou Datena. Não vou vir aqui pedir morte e nem tortura
pra ninguém. O tal menino deve ser investigado, não pré-julgado por uma
informação de um advogado de miliciano através de quintos, ou seja, conhecido
do conhecido do cliente.
Não concordo com justiçamento, nem com estado de exceção. Nem pra políticos
poderosos, nem para o mais humilde auxiliar de serviços gerais. Não será essa
irracionalidade que trará Santiago de volta. No máximo, encobrirá sua morte
numa teia de mentiras convenientes e medidas retrógradas pra democracia que
Santiago ajudava a estabelecer com seu trabalho.
Querer fazer crer que sua morte foi um assassinato doloso qualificado é, não só
uma aberração jurídica, mas um risco pro Estado Democrático de Direito. Assim
tem se postado a OAB, algumas entidades de imprensa ponderadas e grandes
juristas, constitucionalistas e cientistas políticos. E assim eu me coloco
também, desde o princípio.
Me assusta não a ânsia vingativa de parte podre da imprensa, sem vergonha de
explorar a morte de Santiago num circo de horrores, mas a soma de entidades,
instituições e pessoas com peso no nosso jogo democrático. Líderes partidários,
senadores e deputados, jornalistas independentes e principalmente uma massa
acéfala de militantes, que vai para onde o vento da conveniência sopra, sob o
álibi de serem meros reprodutores irrefletidos das ordens insensíveis de seus
capas.
Saem do particular para o geral, assim como fazem o movimento de volta sem se
importar com a coerência e a responsabilidade histórica que carregam em suas
insígnias. Um acidente ocasionado pelo uso temerário de explosivos se
constituiu em ato criminoso fatal, culposo, imerso em um mar de questões sociais
que o construíram. Mas estes agentes sociais querem apagar toda a problemática
social e transformar em mais uma novela vazia de programa da Sônia Abrão, um
misto de filme de quinta de detetive.
Agora, se Santiago nos deixou, os problemas que levaram a sua morte não. E é
com esses que nós, analistas sociais e militantes políticos devemos nos
preocupar. Evitar novos Santiagos é também evitar novos Fernandos, Gleices e
tantos outros no anonimato da hipocrisia. É buscar a causa e a dinâmica, não o
agente. O agente é caso de polícia. A causa e a dinâmica é que afeta a
sociedade.
Tirar conclusões sociais objetivando vingança contra o rapaz é não só errado e
infrutífero, como catastrófico. É assinar embaixo de novos incidentes fatais.
Não é a adesão a leis ditatoriais ou a adoção de uma cultura de 40 anos atrás,
criminalizadora, conservadora e perversa com as minorias que nos ajudará no
aperfeiçoamento da democracia, pelo contrário.
Eu estou me juntando aos que cobram, sem falsa modéstia, consciência aos
recentes Datenas de plantão. Sua fúria e seus interesses políticos imediatos
são nocivos à boa investigação do caso e à boa resolução do problema social em
que o pais está mergulhado.
Usar o partido em seu aniversário para liderar uma cruzada repressora digna dos
generais não é o caminho. Culpar os erros e acertos dos manifestantes pela
morte de um trabalhador também não. Fazer separações moralistas entre joio e
trigo no seio da população nunca levou a nada a não ser guerra civil ou regime
ditatorial.
Assim também arrancar a fatalidade do contexto em que se deu é uma grave ofensa
à memória do cinegrafista, que estava ali justamente para tentar oferecer à
sociedade transparência do que ocorria. Ele estava ali, pois perguntas como o porquê
daquelas manifestações, o quem daquelas manifestações e tantas outras estavam
sendo feitas pela democracia, e continuam ainda sem reposta.
Porque o povo repudia mortalmente os partidos? Porque preferem Fernandinho
Beira-Mar a Renan Calheiros? Porque não acreditam mais no sistema político?
Porque não acreditam nas instituições, todas elas, desde a AGETRANSP, passando
pelo TCM, Câmara, prefeito, chegando ao Congresso, justiça e mesmo
presidencial? Isso deve ser normal?
As revoltas DIARIAS de passageiros, quebrando trens que os sufocam e torturam,
que matam e roubam a dignidade popular, tomam proporções cada vez mais
extensas. A vida social está convulsada, o cidadão não tem mais paciência nem
motivos para tê-la com nenhum elemento de mediação democrática. E os elementos
democráticos citados pouco se importam com tal estado desruptivo. Sociólogos,
juristas, cientistas políticos, parlamentares, jornalistas e tantos outros
denunciam a gravidade do problema, que já não é teórica, é sensível, mas são
ignorados pela crença de que da pra aguentar um pouquinho mais antes de tudo
ruir.
As grandes cidades vivem em constante crise. Nos encontramos em debates quando
por algum motivo alguns indivíduos chegam ao limite e extravasam, mas ignoramos
a tensão diária de quem pega trem, quem procura um hospital, quem não encontra
escola, quem não tem casa ou emprego. Só os percebemos em seus últimos gritos,
quando nos afetam com sua indignação. Até lá, brincamos de instituições, nos
gabamos por projetos cosméticos, por discursos que falam de coisas que não
sentimos, não vivemos, não procuramos viver sequer um dia.
Preferimos acorrer em caçar a revolta do oprimido. Separamos o joio do trigo ao
medir com uma régua o nível de revolta, o grau de civilidade que a dor não lhe
tirou. Estamos mais dispostos a jogar a revolta popular, incontrolável e
crescente, no mesmo saco dos erros individuais e calá-la arrogantemente com
nossos esquemas teóricos falidos e rejeitados.
Vemos o sofrimento e a indignação e nos apresentamos soberbos com nossas
respostas, sem sequer notar que nossas respostas já estão sendo queimadas na
ira popular há tempos! Chegamos com nossa empáfia cega e nos assustamos com
nossas bandeiras em chamas, e preferimos virar as coisas e dizer: "esse
povo eu não quero, volto quando houver outro."
Lamento dizer, mas este é nosso povo, está é nossa sociedade, estes são nossos
problemas. As mesmas repostas não geram resultados distintos. Os métodos e
teorias não devem exigir que a realidade se ajuste a eles.
Prender Fábio, Caio, Elisa ou seja lá quantos forem não vai reduzir a dor
popular, não vai mitigar o sofrimento diário, e assim, não vai conter a
revolta. Enfiar goela abaixo nossos sistemas falidos em uma sociedade que já
deixou claro, aos milhões, não mais querê-los só vai nos afastar das causas
sociais e das possibilidades de concretizar nossos objetivos de justiça social.
Espero mesmo uma reflexão daqueles que foram tomados,repentinamente, por um
fazer político típico de nossas elites: usar os danos colaterais do sistema
opressor para sobre-oprimir aqueles que tentam escapar a esta opressão.
Nem o justo pesar por uma vida, nem o apego a uma ideologia axiomática, muito
menos o corporativismo raso e a politicagem rasteira justificam usar da morte
de Santiago pra sustentar uma ordem que leva centenas de Santiagos diariamente.
Samuel Braun